quinta-feira, 26 de março de 2015

Barco no estaleiro

                                                                                                                        
                                                                                         texto e foto de Benó


Navegou por mares longínquos, ora mansos como lagos, ora relevados como cordilheiras de altas serras, num sobe e desce de vagas profundas. As baleias e os golfinhos foram a sua companhia na descoberta dos cardumes da prata que encheria o seu ventre para se converter no alimento das famílias e dos homens que o governavam e dele dependiam com confiança.

Muitas campanhas de gente forte e corajosa viveram dele e para ele.

Em terra, ficavam os corações femininos ansiando pelo seu regresso, numa espera longa e, em que, durante esse tempo, saudosas pelo amor dos homens ausentes,  profundos sulcos, sinónimo de cuidados e canseiras,  instalavam-se nos seus rostos jovens.

Envelheciam sozinhas.  

Muitas luas se passaram, muitos ventos zuniram nos seus mastros,  muitas vagas varreram o seu convés. Quantas vezes mergulhou na escuridão dos nevoeiros com o sol embrulhado em densas teias de humidade. Mas, os seus comandantes, mestres na arte de navegar, sempre o souberam dirigir com rumos certos para bons portos.
Agora, tal como eles, a sua vida chegou ao limite.

As tábuas do seu convés esburacaram carcomidas pelo bicho, pela idade que não perdoa e tudo consome, o seu cavername, - a sua coluna dorsal -, a sua estabilidade que lhe proporcionava a forte resistência para vencer a adversidade dos mares, está diminuída; os motores –o seu coração-  pararam para sempre, já não necessitam de óleo; os porões deixaram de ter condições para guardar qualquer espécie piscatória, cheiram a mofo, criaram limo, são urnas vazias.
Hoje só lhe resta o esqueleto velho, enferrujado, apodrecendo a cada dia que passa, ali, no estaleiro onde permanece encalhado, a servir de albergue a ratos e baratas, pouso de aves marinhas, abandonado às intempéries, açoitado por ventos e areias, incapaz de navegar.

Dentro do que resta de si guarda recordações que não partilhará; vagueiam fantasmas de sonhos e fantasias.

 

 

 

terça-feira, 24 de março de 2015

Herberto Helder

 
A homenagem simples do Jardim ao homem que partiu, ao poeta que ficou. Herberto Helder. Extrato do poema LUGAR
 
 
....Encontrei ondas e ondas contra mim, como se eu fosse
um homem morto entre palavras.
Campos de cevada inspirados no fogo que batiam
nas costas das minhas mãos,
aldeias inteiras cantando sua pureza
quase louca. Encontrei depois o lugar
onde deitar a cabeça e não ser mais ninguém
que se saiba. Uma pedra
pedra seca, uma vida entre muitos dons.
Com as raízes de quem divaga.
Uma pedra sem som como quem se move
sobre os alimentos.
..........
 
 
 
                                                                                                    foto de Benó
 
 
 
 
 

quinta-feira, 19 de março de 2015

Simplesmente flores



 Os campos sentem-se abençoados pela água que nestes dias tem caído e tornado vigorosas as plantas que morriam à mingua dela. Como agradecimento, as flores silvestres abrem-se num sorriso e oferecem todo o encanto das suas cores aos passantes que, como eu, reparam nelas.




No jardim d'abrolhos, não há falta de água mas o frio tem engelhado os seus habitantes que num encolhimento sentido têm-se recusado a desabrochar.
No entanto, este lírio, o primeiro desta primavera, cansado de estar apertado dentro da terra, irrompeu e apresentou-se em toda a sua verticalidade azul.

segunda-feira, 16 de março de 2015

A árvore

 
 
O cinzento outono me desfolhou. O frio inverno me lavou com as suas águas ora brandas ora tempestuosas.
Sinto-me nua e começo a sentir nos meus braços os beijos mornos da primavera a chegar, sem calor. Ergo-os numa súplica aos céus para que as águas regressem e encham os campos e as lagoas novamente de vida.
Espero as aves primaveris, quero ouvir o seu chilreio nos meus ramos que aos poucos se vão vestindo de verde, quero ver as acrobacias dos seus voos rasantes quando refrescam o bico nas águas que estão a meus pés e me servem de espelho.
A água está parda e eu ainda nua tremo de frio.
Espero o calor doce dos beijos da primavera.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Vermelho


                                                            foto e texto de Benó



Vermelho é vida, é calor, é paixão, é o verniz que colore as unhas em dias de festa e o baton das bocas ávidas de beijos .

Vermelho é o sangue de inocentes e culpados, virgens e prostitutas, de negros, brancos, amarelos, mesmo de gente que diz tê-lo azul.

Vermelho é a cor da passadeira do êxito mas também é a cor da proibição, da raiva . Vermelhas são as papoilas que salpicam as searas de trigo maduro nos campos desta terra que já foi mourisca.

Vermelhos são os cravos que crescem nos vasos das varandas das casas do seu bairro, tratados e regados com amor, pelas mulheres que outro entreter já não têm, senão cuidar dos craveiros e dos gatos que à noite se enroscam aos seus pés vermelhos de frio.

 

quarta-feira, 4 de março de 2015

Pedras

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 



 
 
                                                                    fotos e texto de Benó
 
 
Juntaram-se num encontro mesmo ali, sobre o mar, para conversar e admirar em conjunto as cores do entardecer e por ali ficaram.  Assim se encontram há muitos e muitos anos, tantos que ninguém se lembra desde quando.
O vaivem das marés lava-as, beija-lhes os pés, enche-as de salinidade.
O sol aquece-as e os lagartos fazem delas o seu mirante enquanto se bronzeiam e admiram a profundidade do verde mar.
Em noites de lua cheia, as duas amigas brilham como prata e, possivelmente, recebem a visita de sereias e de mouras encantadas que aparecem para uma pequena conversa.
As pedras amigas também sentem o desgaste do tempo, do vento, da chuva e a base do seu apoio, ano após ano, vai-se tornando mais frágil e inseguro.
Esperam que, num dia de vendaval daqueles em que as ondas parecem gigantes a querer tudo engolir, uma vaga forte, alta e imponente as arranque do sítio onde se encontram e as coloque lá em baixo no fundo da falésia onde permanecerão cobertas pelo mar para aí se tornarem abrigo de lapas e mexilhões.
Sempre juntas, eternamente, como um amor divino.